Os atores centrais da questão climática: os povos originários

Ouça a análise do comentarista Rafael Simões

Publicado em 13/10/2025 às 11h49

Clima. Crédito: Pexels

Nesta edição de "Espírito Santo: Que História É Essa?", o comentarista Rafael Simões, na série especial sobre mudanças climáticas e a COP 30 – que acontecerá de 10 a 21 de novembro de 2025, em Belém, Pará – traz a importância dos povos originários no debate sobre os impactos dessas mudanças. Vamos à história:

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O conhecimento ancestral e a emergência climática: uma perspectiva indígena para a cura da Terra

A emergência climática global não é apenas uma crise ambiental, mas uma profunda crise civilizatória, reflexo de um modelo de desenvolvimento extrativista e predatório. Nesse cenário crítico, os povos originários emergem como protagonistas centrais, não apenas como as populações mais vulneráveis aos impactos do aquecimento global (secas, inundações, perda de biodiversidade), mas, fundamentalmente, como detentores de conhecimentos e práticas essenciais para a mitigação da crise e para a construção de um futuro sustentável.

A importância dos povos indígenas para o enfrentamento da emergência climática reside em três pilares interconectados: a guarda territorial, o conhecimento ancestral e o paradigma de vida.

1. A guarda territorial e a preservação de ecossistemas:

As terras indígenas, quando demarcadas e protegidas, são comprovadamente as áreas com os menores índices de desmatamento e degradação. Isso se deve à relação intrínseca e de profundo respeito que os povos originários mantêm com seus territórios. Eles atuam como verdadeiros guardiões das florestas, conservando grandes estoques de carbono essenciais para a regulação do clima. A luta pela demarcação e proteção de seus territórios é, portanto, uma das ações mais eficazes e urgentes no combate à crise climática. Reconhecer e garantir seus direitos territoriais é um imperativo de justiça climática e ambiental.

2. Conhecimentos ancestrais: ciência e adaptação:

Os conhecimentos acumulados pelos povos indígenas ao longo de milênios, em estreita observação e convivência com os ciclos da natureza, representam um vasto e sofisticado sistema de saberes. Longe de serem meros saberes "tradicionais" ou folclóricos, essas práticas constituem verdadeiras ciências da floresta e do território:

Manejo Sustentável: Incluem técnicas de manejo agroflorestal, de uso da terra e de recursos naturais que garantem a produtividade sem esgotar o ecossistema, promovendo a biodiversidade.

Adaptação Climática: Seus conhecimentos sobre as estações, os padrões de chuva e os comportamentos da flora e fauna são vitais para a adaptação aos novos e imprevisíveis ritmos ecológicos impostos pelas mudanças climáticas, garantindo, por exemplo, a segurança alimentar em meio a eventos extremos.

Incorporar esses saberes na governança ambiental e nas políticas climáticas é crucial. O conhecimento indígena oferece soluções baseadas na natureza que são viáveis, resilientes e profundamente enraizadas na sustentabilidade.

3. Um paradigma de vida para a cura da Terra:

Mais do que técnicas de manejo, os povos originários oferecem uma cosmovisão fundamentalmente diferente do paradigma extrativista ocidental. Eles enxergam a Terra — a Mãe Terra — não como um recurso a ser explorado, mas como um ser vivo, sagrado e interconectado, do qual a humanidade faz parte.

Essa visão de mundo promove uma ética do cuidado e da reciprocidade. A emergência climática é vista como o resultado do "adoecimento da Terra", e a resposta é um chamado à "cura", que exige a transformação radical da nossa relação com o planeta.

Em resumo, não haverá justiça nem solução efetiva para a emergência climática sem o protagonismo, o reconhecimento e o pleno respeito aos povos originários. Eles nos lembram que a crise não é apenas de carbono, mas de ética e de relação. Suas vozes, seus territórios e seus conhecimentos são a principal reserva de futuro para toda a humanidade. A luta indígena pela vida em seus territórios é a luta pela sobrevivência do planeta.

O líder e pensador indígena Ailton Krenak, do povo Krenak em Minas Gerais, oferece uma das perspectivas mais lúcidas sobre a emergência climática, desvendando-a como uma crise civilizatória e não apenas ambiental.

Suas ideias, difundidas em livros como "Ideias para Adiar o Fim do Mundo" e "A Vida Não É Útil", desmembram a crise climática a partir de uma crítica profunda à mentalidade ocidental.

Aqui estão os pontos centrais do pensamento de Ailton Krenak sobre a emergência climática:

1. Crítica à "Humanidade Descolada" da Terra: Para Krenak, o ponto de origem da crise está na crença da sociedade ocidental de que o ser humano é uma entidade separada e superior à natureza. Ele critica a ideia de que "a Terra é uma coisa e nós, outra":

A Terra como Organismo Vivo: Krenak insiste que a Terra é um organismo vivo e que nós somos apenas uma de suas "capilaridades". A crise climática é a reação desse organismo ao modo de vida predatório e extrativista da humanidade.

O Antropoceno como Construção Mental: A era do Antropoceno (a época geológica marcada pela intervenção humana) é, na verdade, uma configuração mental que nos leva a "roer" o planeta inteiro.

2. A crise climática como colonialismo: Krenak traça uma linha direta entre o colonialismo histórico e a crise climática atual:

Racismo Ambiental: Ele denuncia que a crise atinge desproporcionalmente os povos originários e as comunidades mais vulneráveis, em um fenômeno que ele chama de racismo ambiental. São os povos que menos contribuíram para o aquecimento global que sofrem os piores impactos (como visto na tragédia do Rio Doce ou nas queimadas na Amazônia).

Logística Extrativista: O pensamento colonial, movido pela economia capitalista, institui a posse de territórios e utiliza a tecnologia para acelerar o extrativismo, negando as fronteiras naturais e invadindo "furiosamente" o organismo Terra.

3. A ideia de "Adiar o Fim do Mundo": O título de seu livro mais famoso é uma provocação. Krenak não propõe uma solução mágica, mas sim um adiamento ativo do colapso, que passa pela recusa em aderir ao "pequeno clube da humanidade" — a parcela da população que se isola na abstração civilizatória:

Recusa à Homogeneização: A chave para o adiamento é ativar a diversidade e resistir à uniformidade imposta pelo consumo e pelo progresso desenvolvimentista.

A "Dança" da Vida: Ele propõe a redescoberta da capacidade de "dançar, cantar, fazer chover", ou seja, de expressar uma vida que não seja apenas útil para o sistema. A vida tem de ser fruição e prazer, e não apenas produtividade.

Reencantamento da Humanidade: Krenak convida a reativar os vínculos profundos com a memória ancestral, o sonho e o território. A saída está em múltiplos mundos e cosmovisões, em oposição ao "mundo único" capitalista e extrativista.

4. A crítica ao futuro e à "Sustentabilidade": Krenak critica a "ideia falsa de futuro" na qual depositamos a esperança de resolver todos os problemas. A saúde e a salvação não são "depois", são agora, no presente.

Ele também questiona a própria noção de "desenvolvimento sustentável", vendo-a como um instrumento da economia que busca licenças para continuar explorando. Para ele, o que está sendo proposto como sustentabilidade é, ironicamente, uma "sustentabilidade do fim", uma ferramenta de análise de um sistema fechado que ignora a morte do rio e da floresta.

Em suma, a visão de Ailton Krenak sobre a emergência climática é um chamado urgente para "descolonizar a mente". Ele propõe que, antes de buscar soluções tecnológicas ou diplomáticas, a humanidade precisa urgentemente se reintegrar ao organismo Terra e abandonar o delírio de ser uma espécie separada e superior.

[produção: Rafael Simões]